Admissão de Zrzolov

"Tenho um servicinho pra você! Há movimentação grande de Exorcistas pela Tailândia, e logo na cidade em que um de meus "mais fiéis" subordinados está. Gostaria que pegasse um trem o quanto antes para lá e averigue essa situação.

Grato,

Conde!

O trabalho era "trabalhoso".
Zrzolov não era uma pessoa que gostava de se mobilizar a serviço dos outros. Havia se acostumado em dar ordens, e de jeito nenhum cumprí-las - nem mesmo na única vez que fora preso, ele tinha o instinto de auto-preservação de obedecer os guardas da militsya. Apanhava brutalmente deles, mas não se curvava. Jurou para si mesmo jamais abaixar sua cabeça. Pra ninguém.
Por isso aqueles tempos servindo aquele gordo flácido das orelhas tortas estava desgastando o mafioso ao máximo. Fazia um tempo que ele não encontrava prazer nas bebidas, nem nos acompanhantes, nem no dinheiro que ganhava aos litros, desde que se submeteu aos serviços do Conde do Milênio. Mas ele tinha que engolir - ele se recordava do tempo em que não passava de um traficante de drogas ao bel-prazer de Tony Soprano. A relação dele com o chefe da Bratva não era muito diferente da que tinha com o Noé. E como ele odiava aquele idiota! Como foi prazeroso deslizar uma navalha na garganta dele lentamente na frente dos capangas dele.
Pretendia fazer o mesmo com o Conde quando tivesse a chance. Mas por enquanto teria que engolir as ordens dele, até que fosse poderoso o suficiente para tomar o lugar dele como fez com Tony Soprano e milhares de outros chefes da bratva.

Observou o trem vomitando fumaça no ar, escurecendo ainda mais o céu. Não...aquilo o deprimia ainda mais. Apesar da personalidade apodrecida e extremamente urbana do pequeno mafioso, ele admirava os céus limpos e o sol aconchegante quase como um capiau admirava. Era um de seus únicos prazeres puros. Aquela panela que o governo russo chamava de locomotiva era um troço realmente deplorável. Os pseudo-governantes russos costumavam encher a goela de dinheiro e oferecer aquilo em troca para as pessoas. Quando não coisa pior. Mas ele não estava ligando pra isso, não é? Zrzolov vivia num flat em Moscou que de tão luxuoso chegava a ser ridículo. Vivia em uma realidade banhada de sangue e dinheiro - e como amava viver nela! Não a trocaria por nada nesse mundo. Ou...talvez...por uma realidade ainda mais banhada em sangue e dinheiro.

Mas por enquanto...agüentar!
Tailândia...que bosta, hein? Esteve lá algumas vezes pra supervisionar o tráfico de ópio que estava debaixo de sua "asa", mas era um lugar sujo, feio, pobre e sem diversão nenhuma. As tailandesas e tailandeses também eram maçantes e raramente se via um bonito fisicamente. Aquela viagem ia ser bem mais longa que ele desejaria.Esperava encontrar logo o tal "mais fiel" subordinado do Conde, apagá-lo se fosse preciso e voltar pro seu flat e seus cassinos em Moscou.

Ouviu o integrante da Militsya falar. Apenas mexeu o charuto entre os dentes, o olhando de cima a baixo - aliás, bem abaixo, considerando os estúpidos 1,55m de Zrzolov. Aquele olhar significava que o mafioso não tinha ido com a cara do policial. Raramente ele ia com a cara de alguém. Acompanhou-o até dentro do trem, sentando-se mal-educadamente com as pernas abertas e espalhado no assento, soprando fumaça do charuto pra cima. Se manifestou depois de uns minutos de silêncio.

- Qual seu nome mesmo? Ahn... vou te chamar de Bóris. - abanou a mão para o policial, sem fazer questão de ouvir a resposta. - Bóris...só você da militsya aqui? Que azar hein? Tem alguma família?

Apesar das perguntas, não parecia interessado na resposta. Colocou os dois pés na mesinha que separava os bancos - aquelas botas DOURADAS, oh meu Deus, QUEM DIABOS USA BOTAS DOURADAS DE BICO FINO? - e avivou a chama do charuto que já estava na metade.

Zrzolov não deixou-se intimidar pelo velho. Primeiro por não ser um "garoto" - tinha mais de 30 anos na cara e com certeza tinha muito mais experiência do que um velho fedido a marisco com surto de valentia. Mas admirava ele. Só se fosse muito ignorante que ele não saberia que estava se metendo com a bratva, e mesmo o sendo, resistir a alguém ameaçando destroçar seus colhões era...ter muitos colhões. Continuou com a arma apontada para ele, um revólver .38 com silenciador que faria um furo do tamanho de uma bola de baseball onde quer que atingisse a carne de alguém, falando no mesmo tom grosso e carregado de sotaque.

- Moleque é sua mãe de quatro num bote salva-vidas na península Ibérica. - se pôs na ponta dos pés para olhar o marinheiro diretamente nos olhos. - Sua sorte é que aparentemente temos interesses comuns.

A expressão tensa e ameaçadora dele se desmanchou em languidez. Guardou o revólver dentro das calças folgadas e retirou de dentro do bolso um charuto cubano gold-label, oferecendo-o ao marinheiro em lugar do cigarrinho de três rublos que este tragava, e tomando outro para si mesmo.

- Eu preciso sair daqui, e esses fuckin' exorcistas estão me atrapalhando. Se a morte não te tenta, talvez um pecado maior sirva pra você. - deu um sorriso de lado. - Me leve pra Tailândia, e você vai ter tanto dinheiro que vai passar o resto da sua vida decrépita numa ilha do Havaí cercado de morenas gostosas bebendo batida de abacaxi com Vodka.

Ao contrário de Lustus ou do marinheiro, não se via sequer um ar de sorriso na cara do mafioso. A cara dele era bem "tumular" por assim dizer, os cabelos quase brancos colados no rosto por causa da chuva, aquelas olheiras purpura evidenciadas em seu rosto branco. Daquele jeito chegava a dar medo: Parecia alguém que poderia matar alguém só de passar isso na telha.

Deu um muxoxo.
Tá, o cara conseguia desviar as balas com chuva.
Mas isso significava que aquele verme de batina tinha medo de ser atingido.
E ao que parecia, só controlava o andar de cima, não o andar de baixo.

- ÔOO VELHO! Tente o máximo pra alinhar essa banheira de costas pro Padim Císso ali do porto! - rosnou. - Quando eu gritar, coloque essa porcaria no máximo de velocidade que conseguir.

Se seu raciocínio estivesse correto, as turbinas do navio iria vomitar uma quantidade de água assombrosa para trás com o tranco, suficiente pra quase chegar ao exorcista.
Esse jato de água cortaria a chuva e a resistência vento do caminho, criando um "escudo" por alguns segundos ao redor dos projéteis. Mais ou menos a lógico do vácuo nas pistas de corrida.
Seria uma manobra que requeriria extrema concentração da parte dele e do militsya, então ele disse com calma.

- Militsya. Preste atenção. No momento em que eu gritar, no momento que o velho der o tranco, vai ter que atirar. No EXATO momento, nem um segundo a mais. - instruía. - Nossas balas vão estar acobertadas pelo jato dágua das turbinas nesse momento. E esse motherfucker vai ver quem é o boss das águas aqui, da.

Se colocava em posição de mirar, segurando-se na barra de ferro da beirada pois o tranco seria forte. Gritou um "JÁ" e atirando no exato momento em que turbina lançava os jatos d'agua para trás.

Falou alguma coisa num tom extremamente baixo, não se sabia se em concordância ou negação á ação do militsya de atrasá-los. Permanecia de costas para o balcão da recepção, tirando o bolo insosso de goma da boca e colocando mais esferas coloridas entre os dentes.

Aqueles olhos profundos e sem brilho algum observavam tudo de soslaio. Aqueles ouvidos atentos, decorados de brincos dourados eram radares.
Cada movimento. Cada ação. Cada respiração. E por que não cada pensamento.
Zrzolov havia se tornado um paranóico com os anos de máfia (afinal, ser detentor de tanto poder tinha umas conseqüências bizonhas), e como um bom paranóico ele perceberia qualquer movimentação estranha. Tinha que ser assim. Dentro do mundo do crime, sempre ia ter alguém esperando um momento de distração para cortar suas pernas.

Uma vez ou outra ele se indagava se ser sempre assim compensava seu poder.
Mas só de vez em quando. Só quando lúcido.
O que era quase nunca.

Assoprou mais uma bola de chiclete, dessa vez bem lentamente, e quando essa estourou, ele desenhou um ar de sorriso no rosto.

Se o militsya estava diferente, o que se diria daquele baixinho loiro.
Ele se virou puro sorriso e doçura para o policial, sem falar um palavrão, dar um resmungo, e cantarolou.

- Da, da, vamos!~~ - em contraste com tal doçura haviam dois olhos violetas que agora, pálpebras semi-cerradas, perfuravam a alma do policial.

Seguiu assobiando até o porto, com as mãos no bolso, esperando o que iria encontrar, aquela ansiedade irrequieta havia se esvanecido dele simplesmente. A ponto dele deixar o militsya seguir na sua frente no caminho até o porto.